A
INTERDISCIPLINARIDADE COMO FATOR DE MEDIAÇÃO DE CONHECIMENTO NO CONTEXTO
ESCOLAR
Maria Gorete de Souza Orestes[1]
maria-gorete79@hotmail.com
RESUMO
Este artigo proporciona um estudo da
interdisciplinaridade, tendo como objetivo analisar no sentido de integração
total de todas as áreas do conhecimento nas salas de aulas. A pesquisa partiu
de um estudo que trata desta temática e utiliza na educação um contexto dos
conhecimentos dos alunos, professores e toda comunidade escolar, mostrando sua
importância sem anulação das outras disciplinas, buscando resultados que desenvolvam
a aprendizagem das crianças de forma significativa. Considera que a prática
interdisciplinar pode ser visto como um fator de mediação de conhecimento
amplo, já que interage com as demais disciplinas. Assim, este artigo de caráter
bibliográfico, e objetiva estudar a relevância do tema para a prática docente,
com o intuito de promover a abrangência discursiva entre os profissionais da área
da educação.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade.
Conhecimento. Prática.
RESUMEN
Este artículo ofrece un estudio de la
interdisciplinariedad, con el objetivo de analizar el efecto de plena
integración de todas las áreas del conocimiento en las aulas. La encuesta
proviene de un estudio que aborda este tema y se utiliza en la educación un
contexto del conocimiento de los estudiantes, profesores y toda la comunidad
escolar, mostrando su importancia sin cancelación de otras disciplinas,
buscando resultados que desarrollan significativamente de aprendizaje de los
niños. Considera que la práctica interdisciplinar puede ser vista como un
factor de mediación amplio conocimiento, ya que interactúa con las otras
disciplinas. Por lo tanto, este artículo de carácter y objetivo estudio
bibliográfico la relevancia del tema para la enseñanza práctica, con el
objetivo de promover el ámbito discursivo entre profesionales en el área de
educación.
Palabras-clave: la
interdisciplinariedad. Conocimiento. Práctica.
1-INTRODUÇÃO
O
presente artigo faz uma abordagem do conceito de interdisciplinaridade, considerando
sua importância na educação. A interdisciplinaridade é um movimento que
conceitua uma prática em processo de construção e desenvolvimento dentro das
ciências e do ensino das mesmas, tendo campos distintos que torna a
interdisciplinaridade presente.
Define-se
através de um objeto de construção que estuda com muitas dificuldades e tem
como intenção rever seus conceitos e apresentar resultados positivos na
educação de todos os países do mundo minimizando as dificuldades encontradas
diariamente no processo de ensino aprendizagem, tornando as dificuldades mais acessíveis,
juntando as disciplinas numa única área para assim melhorar a aprendizagem.
A
interdisciplinaridade chegou ao Brasil nos anos 60, com a elaboração da lei número
5.692 /71. Daí em diante a educação brasileira vem se intensificando a cada
dia, principalmente com aplicação da nova LDB, (Lei de Diretrizes e Bases). Além
da forte influência da legislação e as propostas dos parâmetros curriculares, a
interdisciplinaridade vem ganhando forças nas escolas e nos discursos de muitos
docentes de todos os níveis.
Ainda
assim, percebe-se que a interdisciplinaridade precisa ser mais conhecida no
âmbito educacional, com um melhor entendimento, quebrando assim os paradigmas
educacionais. É preciso estar sempre nas discussões nos estabelecimentos de
ensino, e a interdisciplinaridade vem intervindo nas outras disciplinas de
várias maneiras gerando assim muitas ambigüidades nas organizações das ideias.
Portanto,
será uma abordagem reflexiva levando em consideração a metodologia baseada no
objeto de estudo, pesquisa, leitura, com o objetivo de compreender a
importância da interdisciplinaridade como fator de mediação de conhecimento no
âmbito escolar.
Partindo
desse pressuposto, afirma-se que desenvolver a prática docente sob a luz da
interdisciplinaridade, torna-se um desafio, principalmente para os educadores,
já que as escolas em sua grande maioria ainda estão sob a ótica tradicional. No
entanto, é possível perceber que as mudanças requerem esforços e para construir
uma nova escola é preciso partir do conhecimento e do coletivo, formando um
conjunto de componentes viáveis a aprendizagem.
2-FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1-Disciplina
e Interação: uma prática inovadora
De
acordo com Fazenda (2003) a interdisciplinaridade precisa estar interligada às
disciplinas, ou seja, nas áreas do conhecimento, pois, com o mundo globalizado
já não se permite que elas funcionem isoladamente e o homem precisa vencer
esses desafios lançados na educação e é necessário vencer também os métodos
tradicionais para haver um avanço maior e positivo no ensino.
Neste
contexto, é preciso que as abordagens e reflexões a respeito do currículo e sua
reorganização nas áreas do conhecimento tenham como foco os princípios
pedagógicos da interdisciplinaridade com a identidade autônoma. É preciso
redefinir a relação dos sistemas de ensino e das escolas, que são as mais
beneficiadas com a proposta curricular facilitando. Assim, a compreensão dos
conteúdos no contexto escolar necessita ser ampliada para mediar o conhecimento
face à interdisciplinaridade.
Dentro
da interdisciplinaridade, há outras formas de compreensão como as
multidisciplinaridades que têm a intenção de integrar os conhecimentos e as
disciplinas num único elo para que as atividades se tornem uma prática
inovadora e produtiva no âmbito escolar. Japiassu (1996) caracteriza a
multidisciplinaridade como uma ação simultânea e que as disciplinas trazem uma
temática comum, mesmo sendo ainda muito fragmentada e pouco explorada no
conhecimento e até mesmo na relação entre as disciplinas que precisam ser mais
compreendidas.
Neste
sentido, Severino (1998) diz que a pluridisciplinaridade difere um pouco do
anterior, pois apresenta assunto. Mas a interação entre o conhecimento e a
relação é mais interdisciplinar, e se situa ao mesmo nível, sem haver uma coordenação
superior. Estudiosos não estabelecem muitas diferenças entre as duas: multidisciplinaridade
e pluridisciplinaridade, por considerar as duas um diálogo cooperativo entre as
áreas do conhecimento. A interdisciplinaridade mostra um nível de interação das
disciplinas, que, segundo Santomé (1998), analisa a interdisciplinaridade como
uma forma comum, ou seja, um grupo de disciplinas afins que apresenta as mesmas
finalidades entre as aulas. Então a interdisciplinaridade é a cooperação e o
diálogo entre o conhecimento e as disciplinas, que podem ser assumidas de
maneira e de formas variadas na integração das ações.
A
interdisciplinaridade supõe um eixo integrador, que pode ser o objeto de conhecimento,
um projeto de investigação, um plano de intervenção. Nesse sentido, ela deve partir da necessidade sentida pelas escolas, professores
e alunos de explicar, compreender, intervir, mudar, prever, algo que desafia
uma disciplina isolada e atrai a atenção de mais de um olhar, talvez vários.
É
preciso defender a interdisciplinaridade, considerando uma meta a seguir, sem
ser forçado por uma lei, e sim por ela está trazendo benefícios importantes
para a educação de maneira lúdica, utilizando mecanismos que torne a
aprendizagem significativa. Busquets (1998) aponta a transdisciplinaridade como
uma abordagem de integração entre as disciplinas, como uma espécie de
coordenação entre as disciplinas e interdisciplinas e que é preciso inovar o
sistema de ensino de maneira integral.
Desse
modo os vários tipos de interação entre as disciplinas. É preciso discutir e analisar
suas concepções interdisciplinares mais comuns e discutir os pontos polêmicos e
contraditórios do assunto abordado, pois, a mesma apresenta vários conceitos enfatizando
variedades diferentes. No entanto, são muito semelhantes por isto a seguir
vê-se uma classificação mais ampla dos tipos de interdisciplinaridade (YUS,
1998).
A
interdisciplinaridade pode ser vista como heterogênea. Segundo Fazenda (2003),
a mesma é uma espécie de enciclopédia e vem a somar nas informações e nos
componentes curriculares, das diversas disciplinas. É fundamental enfocar os
programas que garantem uma formação geral. A segunda vertente, enfocado por
Fazenda (2003), é a união que se estabelece em uma espécie de meta disciplinar,
ou seja, que trabalha as disciplinas diferentes entre elas. Assim, é preciso
utilizar várias tentativas e utilizar os instrumentos necessários, analisando
bem os conceitos e a análise epistemológica para assim, fazer a associação das
disciplinas num mesmo objetivo de disseminar o conhecimento.
Enquanto,
que a terceira dimensão da interdisciplinaridade vem auxiliar a consistência
numa associação essencial para as disciplinas serem consolidadas num mesmo
método e procedimentos interdisciplinares, buscando não ultrapassar o domínio,
e as ocasiões provisórias. Tratar da interdisciplinaridade reflete os problemas
impostos pela sociedade que atualmente são bem frequentes ao nosso dia a dia. Os
enfoques sociais são questão de tentar unir todos esses pressupostos e encontrar
possíveis soluções nos conceitos epistemológicos.
Gonçalves
(2006) fala da interdisciplinaridade unificadora, onde mostra uma coerência
entre as disciplinas e o domínio dos estudos, mostrando uma integração teórica
dos métodos estudados. Pensa numa forma legítima de interdisciplinaridade, que
e só é atingida através da pesquisa científica. Os PCNs (Parâmetros Curriculares
Nacionais) trazem uma contribuição importantíssima na abordagem de
interdisciplinaridade e na integração com o ensino, analisando os cuidados com
documentos e toda concepção sobre a interdisciplinaridade (BRASIL, 2002).
Nesta
perspectiva, a interdisciplinaridade não tem a pretensão de criar novas
disciplinas ou saberes, mas de utilizar os conhecimentos de várias disciplinas
para resolver um problema concreto ou compreender um fenômeno sob diferentes
pontos de vista. Em suma, a
interdisciplinaridade tem uma função instrumental, pois trata-se de
recorrer a um saber útil para responder às questões e aos problemas sociais
contemporâneos.
Numa
visão instrumental, Fazenda (2003) entende que a interdisciplinaridade tem
sustentado uma abordagem de longos anos. O século XXI mostra isso claramente
num desenvolvimento científico e tecnológico, e as pesquisas interdisciplinares
tem se iniciado com interesses militares. Esses pressupostos a favor da perspectiva
instrumental não encerram a ideia de interdisciplinaridade. Os PCNs são
recorridos sempre no ensino médio para possíveis orientações, visando melhorar
os componentes educacionais.
Os
PCNs também conceituam e defendem a interdisciplinaridade com novas
perspectivas curriculares, organizando uma nova proposta pedagógica da escola,
através dos princípios básicos que são o saber, a contextualização, a
interdisciplinaridade, as competências e habilidades. Um trabalho
interdisciplinar, antes de garantir associação temática entre diferentes disciplinas,
deve buscar unidade em termos de prática docente, ou seja, independentemente
dos temas, assuntos tratados em cada disciplina isoladamente.
Apresentar uma proposta, centrada no trabalho permanentemente
voltado para o desenvolvimento de competências e habilidades, requer apoiar a
associação ensino, pesquisa e no trabalho com diferentes fontes expressas em
diferentes linguagens. Isto significa comportar diferentes interpretações sobre
os assuntos trabalhados em sala de aula. Portanto,
esses são os fatores que dão unidade ao trabalho das diferentes disciplinas, e
não a associação das mesmas em torno de temas supostamente comuns a todas elas
(FAZENDA, 1992).
Diante
dessa afirmação, os PCNS propõem que a interdisciplinaridade assuma uma prática
integrada no desenvolvimento das ações desenvolvidas pelos educandos,
mobilizando-os assim para avançar no âmbito educacional e nas áreas do conhecimento
(BRASIL, 2000). Neste caso, propõe-se que as disciplinas sejam autônomas e que
não sejam descentralizadas por parte dos educadores, que eles consigam vencer
os obstáculos sem gerar tanta confusão ao fazer a junção das disciplinas,
articulando bem os conteúdos para ser melhor compreendido pelos educandos.
A
interdisciplinaridade não pode nem deve ser entendida como uma prática isolada.
Ela deve ser utilizada de forma interdisciplinar para ir além das perspectivas
metodológicas, epistemológica e teórica na dinâmica que se propõe cada unidade
escolar, criando suas possibilidades de desenvolvimento conjunto dos
educadores.
Entende-se, que para uma atitude
interdisciplinar, diante de alternativas para conhecer melhor, atitude de
espera ante os atos consumados, de reciprocidade que impele à troca, atitude de
humildade diante da limitação do próprio saber, de perplexidade ante a
possibilidade de desvendar novo saberes, de desafio, atitude de envolvimento e
comprometimento com os projetos e com as pessoas neles envolvidas, pois, de
compromisso em construir sempre da melhor forma possível, atitude de
responsabilidade, mas, sobretudo, de alegria, de revelação, de encontro, de
vida (FAZENDA, 1992, p. 79).
Fazenda
(1992), também, determina como seria uma sala interdisciplinar, ou seja, numa
sala de aula interdisciplinar enfocando que neste espaço, a autoridade é
conquistada, enquanto na outra é simplesmente outorgada. Numa sala de aula
interdisciplinar a obrigação é alternada pela satisfação, a arrogância, pela
humildade, a solidão, pela cooperação; a especialização, pela generalidade do
grupo homogêneo, pelo heterogêneo a reprodução, pela produção do conhecimento.
Numa
sala de aula interdisciplinar, todos se percebem e gradativamente se tornam
parceiros e, nela, a interdisciplinaridade pode ser aprendida e pode ser ensinada,
o que pressupõe um ato de perceber-se interdisciplinar. Outra característica
observada, pela autora, é que o projeto interdisciplinar surge às vezes de um
que já possui desenvolvida a atitude interdisciplinar e se contamina para os
outros e para o grupo. Para a realização de um projeto interdisciplinar existe
a necessidade de um projeto inicial que seja suficientemente claro, coerente e
detalhado, a fim de que as pessoas nele envolvidas sintam o desejo de fazer
parte dele (FAZENDA, 1994).
Verifica-se
um pensamento a respeito da interdisciplinaridade, numa dimensão antropológica
de influência no comportamento e nas ações dos projetos pedagógicos,
valorizando as práticas e atitudes humanas do profissional da educação
interdisciplinar. Para Severino (1998), a interdisciplinaridade, como algo
prioritário e fundamental a prática docente, precisa ser mais evidenciada nos
objetivos das escolas, fundamentando-se em princípios básicos. Assim,
percebe-se que são várias as possibilidades para a definição da
interdisciplinaridade e que não se tem receitas prontas.
Portanto,
é preciso buscar mecanismo que melhorem a nossa prática docente, numa
perspectiva de avanços positivos no campo pedagógico, pois, quando se discute a
questão do conhecimento pedagógico, ocorre forte tendência em se colocar o problema
da interdisciplinaridade de um ponto de vista puramente epistemológico, com
desdobramento no curricular.
2.2 A Organização do Ensino numa Perspectiva
Interdisciplinar
A interdisciplinaridade tem como proposta promover
uma nova forma de trabalhar o conhecimento, na qual haja interação entre
sujeitos/sociedade/conhecimentos na relação professor/ aluno/ professor,
professor / de maneira que o ambiente escolar seja dinâmico e vivo e os
conteúdos ou temas geradores sejam problematizados e vislumbrados juntamente
com as outras disciplinas (FAZENDA, 2003).
A interdisciplinaridade, segundo Fazenda (2003), é
o elo entre os profissionais do ensino, como forma de reciprocidade, de reflexão
mútua, em substituição à concepção fragmentária do conhecimento, fazendo com
que estes agentes do ensino tenham uma atitude diferenciada perante os
obstáculos educacionais. Percebe-se,
então, que a interdisciplinaridade exige uma atitude de abertura e
responsabilidade. Fazenda (2003) considera que o professor necessita
desenvolver uma ação permeada de criticidade e reflexão perante o aluno, o
conhecimento, a realidade e o outro, estando disposto a vivenciar a dialogicidade.
Neste sentido, a interdisciplinaridade
resgata a importância do outro, sem o qual não pode haver a troca mútua do
pensamento e da linguagem, e amplia os horizontes dentro do processo
sócio-histórico educacional, resgatando a importância do conhecimento das potencialidades,
dos limites, das diferenças e do processo criativo de cada ciência,
respeitando-se, assim, a relatividade entre elas.
Há, pois, a transformação de um pensamento lógico
formal configurado como dialético, porque não pressupõe a unificação de
diferentes saberes, mas a construção incessante de relações entre si (FAZENDA,
2003). Dentro desse âmbito de observação, é cabível perceber que a prática da
interdisciplinaridade está inteiramente relacionada à pesquisa, pois o professor,
na perspectiva da interdisciplinaridade, não é um mero repassador de
conhecimentos, mas é reconstrutor juntamente com seus alunos, o professor e
conseqüentemente, um pesquisador que possibilita aos alunos, também, a prática
da pesquisa.
A problematização como metodologia para a
reconstrução do conhecimento dá condições ao
aluno de mover-se no âmbito das teorias, das diferentes áreas do saber,
construindo a teia de relações que vai torná-lo autônomo diante da autoridade
do saber. O professor pesquisador constitui-se, portanto, em agente necessário
de uma formação calçada na interdisciplinaridade (TOMAZETTI, 1998).
A interdisciplinaridade é o elo que possibilita o
estabelecimento de inúmeras relações das disciplinas com a realidade, num
processo recíproco de aprendizagens múltiplas e intermináveis. Assim, professor
e aluno deverão estabelecer diferentes interconexões entre a epistemologia dos
conhecimentos e o mundo que os cerca, a fim de exercitar cotidianamente seus
saberes e as relações entre teoria e prática.
Percebe-se que todo o processo interdisciplinar deve
estar pautado na reflexão. Neste contexto, o processo reflexivo torna-se
alicerce para que se construa um processo interdisciplinar efetivo no
cotidiano, por meio de uma prática pedagógica que esteja impregnada de
pesquisa, discussão, análise e desenvolvimento metacognitivo dos professores e
alunos sobre o conhecimento construído de forma individual e coletiva.
É um processo de desestruturação situacional do
prévio, que segundo Gonçalves (1998) vai à dimensão do possuído e do conhecido,
para buscar uma nova estruturação do pensamento. É necessária a passagem do
pensamento linear lógico formal para o pensamento dialético, em que se
efetivem:
As contradições dos fenômenos;
As relações múltiplas dos saberes;
A problematização da rivalidade;
A busca pela integração do pensar, fazer e pensar;
O processo contínuo de ação, reflexão e ação;
A superação da dependência, da passividade e da
rivalidade;
A autonomia, a ação reflexiva e a cooperação.
Neste sentido, quando se reflete sobre o papel e a importância
do trabalho interdisciplinar na escola é preciso pensar a organização do
ensino, pois, a forma como o conhecimento é adquirido, refletido e organizado
dentro da matriz curricular retrata a própria concepção de ensino e
aprendizagem. Assim, o estudo do currículo acaba por envolver uma análise micro
e macro da realidade escolar, sendo um processo aberto que movimenta a própria
realidade educativa.
No entanto, se sabe que a ideia do currículo é
empregada na escola como um manual descritivo de ações a serem seguidas pelos
professores, alunos e profissionais de ensino de forma mecânica, crítica e
destituída de sentido e significado. O currículo acaba por não se configurar
como um conjunto de orientações e hipóteses de trabalho, originários de um processo
reflexivo por parte de todos que compõem o contexto escolar.
Quando se analisa a construção e a implementação do
currículo, torna-se necessária uma atitude reflexiva permanente da própria
comunidade sobre como o conhecimento escolar é construído, não esquecendo
jamais que ele é constituído pela interconexão entre conhecimentos científicos
e sociais. Entretanto, não é fácil estabelecer parâmetros de ação educativa que
delimitem o trabalho docente, tanto na concepção do currículo como no desenho
da própria matriz curricular.
Nesse sentido, há inúmeros desafios que precisam
ser analisados. A integração do professor na sociedade, tendo clareza de: por
que e para que ensinar o resgate dos conhecimentos prévios e a promoção de um
ambiente educativo que favoreça a aquisição de novas ideias, o trabalho
coletivo, as discussões epistemológicas e metodológicas nas diferentes áreas.
Por esta razão, os conhecimentos dos alunos, da sociedade, das interfaces dos
conteúdos e da concepção filosófica que delimita as condições naturais e
sociais. Assim sendo, a interdisciplinaridade, deve ser inserida no currículo
escolar como suporte de interação, tanto nas causas sociais como no processo de
aprendizagem, desde que desenvolvida a partir do conhecimento e da mediação de saberes.
Tais condições pode ser um desafio, para a escola e professores, mas devem
constituir um trabalho voltado para a interação e a construção de conhecimento
dentro de uma perspectiva coletiva. Portanto, a interdisciplinaridade como uma
nova forma de provocar o debate no campo dos significados construtivos,
oportuniza uma série de modificações, inovações e determinações a partir do
fator mediação, n qual oo professor pode encontrar meios de substituir o
tradicional por uma aprendizagem inovadora.
Partindo deste contexto, o processo de aprendizagem
torna-se capaz de traduzir a humanização ao professor que diante da
possibilidade de mostrar o campo de conhecimento coletivo, pode ao mesmo tempo
desenvolver sua prática docente com mais eficácia o resultado do produto tende
a ser significativo a partir da interdisciplinaridade como fator de mediação na
construção do conhecimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em função do exposto e pela dimensão que a
interdisciplinaridade provoca no âmbito escolar, é possível verificar que este
artigo traduz uma realidade, a partir do objeto de estudo, como uma nova forma
de promover a educação e consequentemente o processo de ensino e aprendizagem. As
práticas interdisciplinares devem alinhar a matriz curricular da escola, para que
os professores tenham clareza quanto às disciplinas e as possíveis interelações
que pode surgir ao longo do trabalho pedagógico.
Assim, ao integrar o conhecimento
escolar com os conceitos científicos, procedimentos, valores e atitudes
sociais, há um movimento contínuo e permanente dos conteúdos. As ideias são
consideradas fundamentais para compreender como marco curricular inseridos na
escola deve estar em consonância com a finalidade educativa, a filosofia da
escola e, dentre outras coisas, com a interlocução dos conteúdos, objetivos e
metodologia contemplados pelo trabalho docente por meio de atividades de
ensino. Contudo, muitas vezes os profissionais de ensino não se percebem como
sujeitos do fazer educativo, deixando de constituir e construir suas próprias
identidades pessoais e profissionais, gerando um espaço isolado e
desconstituído de significados. Ao analisarmos a escola, é preciso refletir
sobre o contexto que a fundamenta e as relações que lá são estabelecidas.
Sendo a escola um contexto social formado por
pessoas, vive das diferentes relações humanas que são estabelecidas por meio
das inúmeras situações educativas. A escola é um contexto social importante, as
inúmeras dimensões que devem ser valorizadas, respeitadas e trabalhadas. Essas
dimensões são frutos e se alimentam das relações estabelecidas entre as pessoas
que compõem o ambiente escolar. Neste
processo dialógico, as ideias, os pontos de vista, as formas de pensamento e as
inúmeras experiências dos professores e alunos acabam oportunizando o
exercício do pensar gerando a aprendizagem por meio da mediação dos
conflitos.
A partilha dos significados pela linguagem gera, no
contexto comunicativo, a colaboração mútua por meio de um trabalho que envolve
grupos de colaboração. Uma sala de aula que propicia um espaço interativo de
diálogo em complexidade crescente potencializa o papel do professor e do aluno.
O professor torna-se tutor do processo de construção dos conhecimentos e dos
significados inerentes a eles e, em parceria com os alunos, problematiza o
contexto escolar e social via grupos colaborativos e cooperativos.
Entendendo a interdisciplinaridade como partilha de
conhecimentos, onde a interação coletiva faz parte desta construção. É preciso
que se desenvolva um trabalho docente voltado para as mudanças e
consequentemente para um novo olhar sob a ótica do conhecimento amplo a partir
dos valores, e dos novos avanços que a cada dia surgem como uma possível
proposta no intuito de melhorar a qualidade de ensino, e a interdisciplinaridade
é o caminho para atender as necessidades dos alunos, que por sua vez deverão
estar inseridos na escola, compartilhando e construindo coletivamente o conhecimento.
REFERÊNCIAS
BUSQUETS,
Maria Dolors et al. Temas transversais em educação: base
para uma formação integral. 4. ed. São Paulo: Ática, 1998.
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Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino
Médio. Brasília: Ministério de Educação, 2002.
FAZENDA, Ivani C. A. Interdisciplinaridade:
história, teoria e pesquisa. São Paulo: Papirus, 1994.
_________________. Integração
e Interdisciplinaridade no Ensino Brasileiro: Efetividade ou ideologia? São Paulo: Loyola, 1992.
_________________.
Interdisciplinaridade: história,
teoria e pesquisa. 11 ed. São Paulo: Papirus, 2003.
GONÇALVES, Carlos
Jairo. Interdisciplinaridade no ensino médio: desafios e potencialidades. São
Paulo: Papirus, 2006.
______________________. A interdisciplinaridade. Rio de
janeiro: Loyola, 1998.
JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade
e Patologia do saber. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
SANTOMÉ,
Jurgo Torres. Globalização e
interdisciplinaridade: o currículo integrado. Tradução de Cláudia
Schilling. Porto Alegre: Artmed, 1998.
SEVERINO, Antônio
Joaquim. O conhecimento pedagógico e a
interdisciplinaridade: o saber como intencionalização da prática. São
Paulo: Papirus, 1998.
SANTOMÉ,
Jurgo Torres. Globalização e
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Schilling. Porto Alegre: Artmed, 1998.
YUS, Rafael. Temas transversais: em busca de uma nova escola. Tradução de Ernani
F. da F. Rosa. Porto Alegre: Artmed, 1998.
TOMAZETTI, E. Estrutura
conceitual para uma abordagem do significado da interdisciplinaridade:
um estudo crítico. Rio de Janeiro: Atlas, 1998.
[1] Mestranda em Ciências da Educação
pela Universidade Autónoma Del Sur – UNASUR, ofertado pela Central de Ensino e
Aprendizagem de Alagoas – CEAP, pólo de Cacimbinhas – Alagoas. Pós-Graduada em
Psicopedagogia Institucional pela Faculdade Castelo Branco do Rio de Janeiro. Graduada
em Normal Superior pela Faculdade São Tomaz de Aquino – FACESTA em Palmeira dos
Índios – Alagoas.
SILVA, Bruna Fernandes da[1]
OLIVEIRA, Salete Barbosa de[2]
Eixo Temático: 04
Modalidade: Pôster
RESUMO: O Movimento
Pró-Desenvolvimento Comunitário, é uma organização não governamental fundado em
1987, com a missão de atender crianças, adolescentes, jovens e seus familiares
em suas necessidades de saúde, educação, assistência social, protagonismo
juvenil e educação ambiental. No ano 2000, para cumprir sua missão criou a
escola ambiental Francisco Caribé com o objetivo de ser um espaço de estudo
sobre educação ambiental, servir como referência em ambientação e vivência para
escolas públicas, principalmente as do campo e promover ações voltadas à
educação ambiental e temas congêneres. Hoje a escola conta com uma área de um
hectare e meio de terra dividido da seguinte forma, área de roçado, pomar,
horta, ervas medicinais e pequenas áreas de culturas permanentes denominadas de
cantinhos verde, sendo implantado também uma área para criação de aves, Centro
de reciclagem Okyra, também no mesmo espaço, tem uma prática de reciclagem de
papel desde 1992 e oferta oficinas de reciclagem de papel para as escolas
visitantes.
Palavras-chaves:
Escola, Caribé, Ambiental.
INTRODUÇÃO
O
Caribé é uma escola não formal, onde seu funcionamento acontece de forma aberta
para toda e qualquer escola, grupos sociais, pesquisadores da área entre
outros. A ideia é que seja disseminadas experiências pelos grupos que desejam
vivenciar hábitos e costumes ambientais que ao longo dos anos foram perdidos, e
com isso o “bem viver” tem sido prejudicado, os seus ensinamentos de respeitar
toda forma de vida, gratidão, preservação dos recursos naturais. Fazendo um
dialogo sobre a educação ambiental nos dias atuais cria-se um ambiente de
reflexão e prática da nossa missão com a natureza.
Entendem-se
por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a
coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e
competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do
povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade. (BRASIL. Lei nº 9.795, de 27 de abril
de 1999).
A
metodologia para vivências é participativa e envolve a todos, no primeiro
momento na sala de interação é apresentada a história do Movimento Pró
Desenvolvimento Comunitário e seu conjunto de atividades e em especial a escola
Caribé, no segundo momento o grupo é dividido em dois e um vai para a Okyra
vivenciar a reciclagem de papel e outro permanece no espaço para uma aula
teórica de educação ambiental, no terceiro momento os grupos trocam de espaços
para que todos vivenciem os dois momentos, no quarto momento os dois grupos
juntam-se para socializar as vivências e a partir daí assumem o compromisso de
propagar novos hábitos, e por fim uma caminhada pelo entorno da escola onde são
apresentadas as plantas e sua importância para o solo e para o meio ambiente,
reforçamos a importância do reaproveitamento de materiais e diminuição do
consumo, o que tem ocasionado bastante lixo nas áreas rurais, as fontes de água
e a cobertura morta (pó de serra) presente. Tem causado uma beleza rústica e
reflexão sobre a preservação do solo, e por fim as plantas ornamentais como
forma de embelezamento e revestimento do solo e permanência da umidade. O trabalho desenvolvido pela Escola Ambiental Francisco
Caribé justifica-se na necessidade de refletir a importância de uma educação
ambiental sensibilizadora e efetiva presumindo uma tomada de consciência que
possam alcançar um equilíbrio ambiental entre o homem e a natureza. A realidade
atual exige uma reflexão linear construindo uma relação com as práticas
coletivas que criam identidades e valores comuns, numa perspectiva de diálogo
com que cada sujeito entende por meio ambiente. Além, desta ação voltada para
as escolas, tem-se acompanhado um grupo de mulheres das ruas próximas da escola
ambiental, estas mulheres são oriundas do campo e guardam em suas raízes
tradições da agricultura e encontram na escola uma forma de vivenciar estas
tradições realizando atividades como cuidados com o espaço, ambientação,
arborização, plantações, higienização e alimentação aos pequenos animais. Após
vários anos de ações desenvolvidas pela escola, este ano implantamos na Escola
Rural Mary Sampaio situada no Povoado Bonifácio em Palmeira dos Índios, um
espaço de reciclagem de papel, uma horta e um herbário como propagação da nossa
metodologia e como estratégia para aprofundar o conhecimento dos conteúdos da
educação do campo e da educação ambiental no meio escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao
concluirmos este artigo, foi possível identificar várias questões relacionadas
à metodologia, principalmente à importância de registrar, sistematizar e
socializar experiências vivenciadas na escola ambiental Francisco Caribé. O
campo tem se mostrado como um grande potencial para pesquisas e tem nos
estimulado a priorizar ações que venham a fortalecer outras escolas.
Acreditamos em uma educação protagonizadora, onde o dia-a-dia dos seus
educandos sejam valorizados. Esperamos que este artigo estimule a realização de
outras experiências e amplie essa atuação orientada pela educação do campo de
maneira contextualizada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NERI, Marcelo
Côrtes, Et al. Superação da pobreza e nova classe média no campo. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2012.
SOARES, Maria do Carmo dos Anjos. Educação ambiental na
escola. [2012]. [13] f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em
Ciências Biológicas)—Universidade de Brasília, Brasília, 2012.
BRASIL. Lei nº
9.795, de 27 de abril de 1999.
UNICEF. Educação
de qualidade: experiências que contribuem ao direito de aprender em Pernambuco,
Paraíba e Alagoas. Recife: Unicef-Recife, 2010.
[1] Graduanda do Curso de
Licenciatura plena em pedagogia pela Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL) brunahia@hotmail.com
[2] Graduada em enfermagem,
Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde (SCBS) – Centro de Estudo
Superiores de Maceió (CESMAC), Pós-Graduanda em Docência para o ensino superior
pelo Centro de Estudo Superiores de Maceió (CESMAC) salete_ambiente@hotmail.com
A menina que me conduzia pela Escola da Ponte na minha primeira visita me disse que na sua escola não havia professores dando aulas. Espantei-me. Nunca me havia passado pela cabeça que houvesse escolas em que professores não davam aulas. Pois as aulas não são o centro mesmo da atividade escolar? As aulas não são o método que as escolas usam para transmitir saberes? E os professores não são os portadores desses saberes? Todo mundo sabe que a missão de um professor é “dar a matéria”… As escolas existem para que as aulas aconteçam… E agora essa menininha me diz que, na sua escola, não havia professores dando aulas e ensinando saberes…
E mais: naquela escola, as crianças não ficavam separadas em espaços diferenciados, de acordo com seu adiantamento: os miúdos ficavam misturados aos graúdos… Mas a separação dos alunos segundo os seus saberes não seria uma exigência da ordem e da eficácia?
Disse ainda que não havia nem provas nem notas. Mas a avaliação… Como se pode avaliar o que foi aprendido se não há provas? Provas são instrumentos de avaliação!
E também não havia as divisões no tempo do pensamento. Nas escolas normais, o pensamento é como na televisão: a intervalos regulares, muda-se o programa. Uma campainha toca: 45 minutos, todos pensam matemática. Transcorridos 45 minutos a campainha toca de novo, os pensamentos da matemática são guardados e, no seu lugar, são colocados os pensamentos de história, até que a campainha toque de novo e os pensamentos de história sejam substituídos pelos pensamentos da biologia. Tudo em ordem perfeita, como soldados em parada, todos caminham juntos aprendendo as mesmas coisas no mesmo tempo, numa imitação das linhas de montagem. Que extraordinárias “máquinas de pensar” são os alunos, que mudam os pensamentos automaticamente ao comando de uma campainha!
Perguntei, então, à menina: “E como é que vocês aprendem?”. Ela não titubeou: “Formamos grupos de seis alunos em torno de um tema de interesse comum…”
Percebi que, naquela escola, não havia nada que se assemelhasse às “grades curriculares”. Grades… Somente um carcereiro desempregado poderia ter ideia tal. Grades. Não há opções, não há escolhas: um desconhecido colocou os saberes obrigatórios dentro de uma grade; conhecimentos “engradados”…
Mas a menina me havia dito que tudo se iniciava com o desejo de aprender algo, curiosidade, que nem precisava estar em qualquer grade obrigatória. Esse desejo era a alma da aprendizagem, a provocação da inteligência. Continuou:
“Convidamos um professor para ser nosso orientador…”
Pode até acontecer que o professor nada saiba sobre esse “tema de interesse comum”. Não importa. Os professores não sabem tudo. Não sabendo, pesquisam. E os alunos, ao ver o professor explorando os caminhos que o levam àquilo que ele não sabe, perceberão que o aprender não está nem na partida nem na chegada, mas na travessia, como disse o educador Riobaldo.
Mas a menina me havia dito que tudo se iniciava com o desejo de aprender algo, curiosidade, que nem precisava estar em qualquer grade obrigatória. Esse desejo era a alma da aprendizagem, a provocação da inteligência. Continuou:
“Convidamos um professor para ser nosso orientador…”
Pode até acontecer que o professor nada saiba sobre esse “tema de interesse comum”. Não importa. Os professores não sabem tudo. Não sabendo, pesquisam. E os alunos, ao ver o professor explorando os caminhos que o levam àquilo que ele não sabe, perceberão que o aprender não está nem na partida nem na chegada, mas na travessia, como disse o educador Riobaldo.
E fiquei a pensar em como seria essa coisa a que se poderia dar o nome de “pedagogia da travessia”…
O sorteio é mais justo
Terminei meu último artigo com a palavra "continua", para mostrar que ainda restavam estocadas a serem desferidas contra o dragão devorador de inteligências.
Eu fizera uma proposta insólita e aparentemente absurda: de que os vestibulares fossem substituídos por um sorteio. Mostrei que, com o sorteio, os inúteis e caros cursinhos desapareceriam. Mostrei ainda que o sorteio libertaria as escolas de sua escravidão aos padrões de conhecimento impostos pelos vestibulares, ficando então livres para verdadeiramente educar. E, ao final, indiquei que o sorteio quebraria a "opção preferencial pelos ricos" que caracteriza o atual sistema, dando chance aos pobres. Agora, os argumentos finais.
4. Os ricos, vendo que a loteria é cega e ignora a riqueza e vendo que os seus filhos não são sorteados, liberados que estão de todas as despesas que tinham anteriormente com os cursinhos, passariam a dispor desses recursos para criar excelentes universidades particulares, sem que o governo tivesse necessidade de fazer qualquer investimento.
5. Eu sou pai. Meus filhos tiveram de frequentar cursinhos e fazer vestibulares. Sei do sofrimento dos pais. Dói muito ver o filho ser reprovado depois de ter passado um ano miserável estudando como um louco coisas que não fazem sentido e serão esquecidas, tais como: "Calcule o logaritmo neperiano da enésima potência da própria base"; "O fenômeno da trissomia é provocado pela: (a) simples deleção dos cromossomos; (b) não-disjunção das cromátides; (c ) não-reversão que ocorre na diacinese; (d) translocação do cromossomo na mitose"; "Quais os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas?".
Primeiro, vem o sentimento de injustiça, vendo o processo de tortura inútil a que o próprio filho é submetido. Depois vem o sentimento de inveja... "Meu filho entrou em medicina na USP. E o seu? O meu não passou. Terá de fazer cursinho de novo..."
Dostoiévski, se minha memória não falha, comentando sua experiência de prisão, disse que havia imaginado uma maneira de enlouquecer os presos: bastava submetê-los ao trabalho forçado de esvaziar uma piscina levando a água em baldes para uma outra. Depois de cheia a segunda piscina, eles teriam de fazer a mesma coisa com ela: esvaziar para encher a primeira. Infinitamente.
Fazer o cursinho de novo, a mesma coisa... É terrível ver o filho vivendo a maldição de Sísifo... Com o sorteio, o pai, ao ver que o filho ficou de fora mais uma vez, dá-lhe um abraço e diz: "Vamos tomar um chope?".
Estou consciente da objeção que paira no ar: sem o terror dos vestibulares, os ensinos fundamental e médio se deteriorariam, pois seriam apenas "pro-forma", já que o aprendizado seria irrelevante para o ingresso nas universidades. Mas esse é um perigo facilmente evitado.
O término do ensino médio seria marcado por uma exame nacional, preparado e aplicado pelo Ministério da Educação. O objetivo desse exame seria verificar se os alunos haviam atingido o nível mínimo de aprendizagem exigido. Não seria classificatório. Haveria apenas os conceitos "aprovado" e "reprovado". Todos os aprovados teriam atingido o patamar de conhecimento julgado suficiente. Poderiam entrar no sorteio. Os outros não. Tal exame seria, ao mesmo tempo, um instrumento para avaliar a qualidade de ensino nas escolas.
Já foi sugerido que, para evitar o vestibular, o ingresso nas universidades deveria se basear no histórico escolar do aluno. Para mim, isso seria um desastre. Eu não entraria. Como já confessei, fui mau aluno. E afirmo que, com honrosas exceções, os professores que tive não mereciam que eu aprendesse o que eles diziam estar ensinando.
Currículos escolares de que escolas seriam dignos de crédito? De todas? E as burlas? Como impedir que escolas inescrupulosas oferecessem históricos escolares fajutos, com entrada garantida na universidade? Para evitar tal possibilidade, seria necessário criar um clube de escolas de elite, cujos históricos escolares seriam dignos de crédito. Somente os históricos escolares de alunos de tais escolas seriam aceitos. Mas escolas de elite são caras... Só os ricos poderiam pagar. Tal sistema produziria uma brutal discriminação contra os pobres, pior que aquela que atualmente existe. A emenda seria pior que o soneto...
A utopia do fim do vestibular
Não me lembro direito, mas é mais ou menos assim um versinho que Mario Quintana escreveu sobre as utopias: "Utopias, dirão, são impossíveis... Mas isso não é razão para não tê-las. Que tristes seriam as noites sem a luz mágica das estrelas...". Na noite escura da estupidez dos vestibulares, sugiro que, por um momento, brinquemos sob a luz mágica de uma estrela...
Imaginemos que os vestibulares fossem substituídos por um sorteio. Quais seriam as consequências?
1. A primeira consequência seria o imediato fechamento dos cursinhos. Não teriam mais razão para existir. As classes mais abastadas, que podem pagar seu preço, não teriam como gastar esse dinheiro. (Uma curiosidade: alguém já fez um cálculo de quanto dinheiro se gasta anualmente no preparo para esse ritual inútil? Quanto vale o mercado dos vestibulares? Sei que é muito dinheiro...)
2. Eliminados os vestibulares, as escolas de primeiro e o segundo graus (eu ainda uso terminologias antigas...) estariam livres para ensinar. Não teriam de se ajustar ao imperativo de "preparar para os vestibulares". São os vestibulares que determinam os rumos das escolas. Os professores que preparam as suas questões o fazem na ignorância de que suas escolhas vão estabelecer o rumo das escolas do sistema educacional brasileiro e o destino das crianças e dos adolescentes. Essa é a razão por que as escolas "fortes" se dedicam a treinar os seus alunos com questões de vestibulares anteriores: ITA (1997), USP (1985), Unicamp (2001), etc.
Livres dessa guilhotina, as escolas poderiam se dedicar à literatura por puro prazer, sem ter de ler dinamicamente resumos dos clássicos. Poderiam levar os alunos pelos caminhos da pintura, da poesia, da música, da história da ciência... Haveria lugar para o sonho dos alunos. A importância dos sonhos? Todo conhecimento começa no sonho. Não é à toa que Polya, matemático húngaro que ensinou na Universidade de Princeton, no seu curto livro sobre a arte de resolver problemas, tenha aconselhado: "Comece pelo fim". A resolução do problema é a ponte que se constrói para chegar a esse fim —se é que o aprendiz o sonhou. Primeiro, o sonho da casa; depois, os conhecimentos práticos necessários para construir a casa. Primeiro, o sonho das asas; depois, a milenar investigação de como voar como as aves.
Um amigo meu, o alemão Polykarp Kusch, Prêmio Nobel de Física e ex-presidente da Universidade de Columbia, me confessou que, após ganhar o prêmio, abandonou a pesquisa e passou a se dedicar ao ensino —não dos pós-graduados, mas dos jovens. E os seus cursos começavam sempre com a mesma pergunta: "O que é necessário pressupor para que se faça a ciência da física?" A resposta é simplíssima, embora seja necessária uma longa gravidez e um longo trabalho de parto para que ela surja dentro dos alunos. Dizê-la, simplesmente, de mão beijada aos estudantes, não funciona. Porque nós só entendemos realmente quando o conhecimento é construído como ponte, passo a passo. Conhecer é construir pontes entre o sonho, estrela distante, e o lugar onde me encontro. Como disse Guimarães Rosa, a coisa não está nem na partida nem na chegada. Está na travessia...
A resposta é a seguinte: para fazer física, é preciso pressupor que o universo seja ordenado e racional. Os grandes físicos estão em busca dessa ordem universal. O seu sonho é decifrar as regras desse xadrez fantástico que é o universo. As escolas deveriam ser "sonhatórios" (pois não há "escritórios"?), onde nasceria o pensamento inteligente! Mas isso é incompatível com a ameaça dos vestibulares, que esperam os alunos à moda da esfinge de Édipo: "Dá-me a resposta certa ou te devoro!".
Se os vestibulares fossem substituídos por um sorteio, o fantasma das respostas certas desapareceria, e as escolas poderiam se dedicar à arte de pensar, que é a arte de fazer perguntas inteligentes.
3. Embora haja raras exceções, a regra é que os cursinhos sejam o caminho para passar nos vestibulares e entrar na universidade. Mas os vestibulares e suas crias, os cursinhos, são uma porta estreita que tem uma clara "opção preferencial pelos ricos". Entram nas universidades públicas gratuitas os que têm mais dinheiro. Os mais pobres ficam de fora. Têm de se contentar com universidades particulares pagas, se é que podem. O atual sistema é, assim, um jogo de cartas marcadas. Injusto socialmente. Com o sorteio, todos —ricos e pobres— teriam oportunidades iguais.
Já se fez a sugestão de cotas para os negros, que estão entre os mais seriamente discriminados pela porta estreita. Mas esse artifício não resolve os problemas educacionais que indiquei, produzidos pelos vestibulares. E é provável que crie uma séria consequência social: será impossível evitar que os "brancos" que "quase entraram" desenvolvam um sentimento de raiva contra "os negros que entraram por favor", culpados de eles terem ficado de fora.
Morangos à beira do abismo
Um homem ia feliz pela floresta quando, de repente, ouviu um urro terrível. Era um leão. Ele teve muito medo e começou a correr. O medo era muito, a floresta era fechada. Ele não viu por onde ia e caiu num precipício. No desespero agarrou-se a uma raiz de árvore, que saía da terra. Ali ficou, dependurado sobre o abismo. De repente olhou para a sua frente: na parede do precipício crescia um pezinho de morangos. Havia nele um moranguinho, gordo e vermelho, bem ao alcance da sua mão. Fascinado por aquele convite, para aquele momento, ele colheu carinhosamente o moranguinho, esquecido de tudo o mais. E o comeu. Estava delicioso! Sorriu, então, de que na vida houvesse morangos à beira do abismo...
Escutatório
Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino...“ Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto... (O amor que acende a lua, pág. 65.)
Jardim
Um amigo me disse que o poeta Mallarmé tinha o sonho de escrever um poema de uma palavra só. Ele buscava uma única palavra que contivesse o mundo. T.S. Eliot no seu poema O Rochedo tem um verso que diz que temos "conhecimento de palavras e ignorância da Palavra". A poesia é uma busca da Palavra essencial, a mais profunda, aquela da qual nasce o universo. Eu acho que Deus, ao criar o universo, pensava numa única palavra: Jardim! Jardim é a imagem de beleza, harmonia, amor, felicidade. Se me fosse dado dizer uma última palavra, uma única palavra, Jardim seria a palavra que eu diria." Depois de uma longa espera consegui, finalmente, plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo porque jardins precisam de terra para existir. Mas a terra eu não tinha. De meu, eu só tinha o sonho. Sei que é nos sonhos que os jardins existem, antes de existirem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação de nossa verdade interior escondida, a alma nua se oferecendo ao deleite dos outros, sem vergonha alguma... Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros sem asas... São como as canções, que nada são até que alguém as cante; como as sementes, dentro dos pacotinhos, à espera de alguém que as liberte e as plante na terra. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia.
O terreno ficava ao lado da minha casa, apertada, sem espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo, mato, espinhos, garrafas quebradas, latas enferrujadas, lugar onde moravam assustadoras ratazanas que, vez por outra, nos visitavam. Quando o sonho apertava eu encostava a escada no muro e ficava espiando.
Eu não acreditava que meu sonho pudesse ser realizado. E até andei procurando uma outra casa para onde me mudar, pois constava que outros tinham planos diferentes para aquele terreno onde viviam os meus sonhos. E se o sonho dos outros se realizasse, eu ficaria como pássaro engaiolado, espremido entre dois muros, condenado à infelicidade.
Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu.
Não chamei paisagista. Paisagistas são especialistas em jardins bonitos. Mas não era isto que eu queria. Queria um jardim que falasse. Pois você não sabe que os jardins falam? Quem diz isto é o Guimarães Rosa: "São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os pássaros dos ventos do céu - constantes trazem recados. Você ainda não sabe. Sempre à beira do mais belo. Este é o Jardim da Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro, um grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha, banguelinha, brinca de se fazer Fada... Um dia você terá saudades... Vocês, então, saberão..." É preciso ter saudades para saber. Somente quem tem saudades entende os recados dos jardins. Não chamei um paisagista porque, por competente que fosse, ele não podia ouvir os recados que eu ouvia. As saudades dele não eram as saudades minhas. Até que ele poderia fazer um jardim mais bonito que o meu. Paisagistas são especialistas em estética: tomam as cores e as formas e constróem cenários com as plantas no espaço exterior. A natureza revela então a sua exuberância num desperdício que transborda em variações que não se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo por canais invisíveis, em ruídos de fontes ou folhas... O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante... E como é bom!
Mas não era bem isto que eu queria. Queria o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro de mim como saudade. O que eu buscava não era a estética dos espaços de fora; era a poética dos espaços de dentro. Eu queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas. Em busca do tempo perdido... Uma pessoa, comentando este meu jeito de ser, escreveu: "Coitado do Rubem! Ficou melancólico. Dele não mais se pode esperar coisa alguma..." Não entendeu. Pois melancolia é justamente o oposto: ficar chorando as alegrias perdidas, num luto permanente, sem a esperança de que elas possam ser de novo criadas. Aceitar como palavra final o veredicto da realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade é a dor que se sente quando se percebe a distância que existe entre o sonho e a realidade. Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade. Entendem agora por que um paisagista seria inútil? Para fazer o meu jardim ele teria que ser capaz de sonhar os meus sonhos...
Sonho com um jardim. Todos sonham com um jardim. Em cada corpo, um Paraíso que espera... Nada me horroriza mais que os filmes de ficção científica onde a vida acontece em meio aos metais, à eletrônica, nas naves espaciais que navegam pelos espaços siderais vazios... E fico a me perguntar sobre a perturbação que levou aqueles homens a abandonar as florestas, as fontes, os campos, as praias, as montanhas... Com certeza um demônio qualquer fez com que se esquecessem dos sonhos fundamentais da humanidade. Com certeza seu mundo interior ficou também metálico, eletrônico, sideral e vazio... E com isto, a esperança do Paraíso se perdeu. Pois, como o disse o místico medieval Angelus Silésius:
Se, no teu centro
um Paraíso não puderes encontrar,
não existe chance alguma de, algum dia,
nele entrar.
Este pequeno poema de Cecília Meireles me encanta, é o resumo de uma cosmologia, uma teologia condensada, a revelação do nosso lugar e do nosso destino:
"No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, urna violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de urna borboleta."
Metáfora: somos a borboleta. Nosso mundo, destino, um jardim. Resumo de uma utopia. Programa para uma política. Pois política é isto: a arte da jardinagem aplicada ao mundo inteiro. Todo político deveria ser jardineiro. Ou, quem sabe, o contrário: todo jardineiro deveria ser político. Pois existe apenas um programa político digno de consideração. E ele pode ser resumido nas palavras de Bachelard: "O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso."
Artigos de
Rubem Alves
O sorteio é mais justo
Terminei meu último artigo com a palavra "continua", para mostrar que ainda restavam estocadas a serem desferidas contra o dragão devorador de inteligências.
Eu fizera uma proposta insólita e aparentemente absurda: de que os vestibulares fossem substituídos por um sorteio. Mostrei que, com o sorteio, os inúteis e caros cursinhos desapareceriam. Mostrei ainda que o sorteio libertaria as escolas de sua escravidão aos padrões de conhecimento impostos pelos vestibulares, ficando então livres para verdadeiramente educar. E, ao final, indiquei que o sorteio quebraria a "opção preferencial pelos ricos" que caracteriza o atual sistema, dando chance aos pobres. Agora, os argumentos finais.
4. Os ricos, vendo que a loteria é cega e ignora a riqueza e vendo que os seus filhos não são sorteados, liberados que estão de todas as despesas que tinham anteriormente com os cursinhos, passariam a dispor desses recursos para criar excelentes universidades particulares, sem que o governo tivesse necessidade de fazer qualquer investimento.
5. Eu sou pai. Meus filhos tiveram de frequentar cursinhos e fazer vestibulares. Sei do sofrimento dos pais. Dói muito ver o filho ser reprovado depois de ter passado um ano miserável estudando como um louco coisas que não fazem sentido e serão esquecidas, tais como: "Calcule o logaritmo neperiano da enésima potência da própria base"; "O fenômeno da trissomia é provocado pela: (a) simples deleção dos cromossomos; (b) não-disjunção das cromátides; (c ) não-reversão que ocorre na diacinese; (d) translocação do cromossomo na mitose"; "Quais os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas?".
Primeiro, vem o sentimento de injustiça, vendo o processo de tortura inútil a que o próprio filho é submetido. Depois vem o sentimento de inveja... "Meu filho entrou em medicina na USP. E o seu? O meu não passou. Terá de fazer cursinho de novo..."
Dostoiévski, se minha memória não falha, comentando sua experiência de prisão, disse que havia imaginado uma maneira de enlouquecer os presos: bastava submetê-los ao trabalho forçado de esvaziar uma piscina levando a água em baldes para uma outra. Depois de cheia a segunda piscina, eles teriam de fazer a mesma coisa com ela: esvaziar para encher a primeira. Infinitamente.
Fazer o cursinho de novo, a mesma coisa... É terrível ver o filho vivendo a maldição de Sísifo... Com o sorteio, o pai, ao ver que o filho ficou de fora mais uma vez, dá-lhe um abraço e diz: "Vamos tomar um chope?".
Estou consciente da objeção que paira no ar: sem o terror dos vestibulares, os ensinos fundamental e médio se deteriorariam, pois seriam apenas "pro-forma", já que o aprendizado seria irrelevante para o ingresso nas universidades. Mas esse é um perigo facilmente evitado.
O término do ensino médio seria marcado por uma exame nacional, preparado e aplicado pelo Ministério da Educação. O objetivo desse exame seria verificar se os alunos haviam atingido o nível mínimo de aprendizagem exigido. Não seria classificatório. Haveria apenas os conceitos "aprovado" e "reprovado". Todos os aprovados teriam atingido o patamar de conhecimento julgado suficiente. Poderiam entrar no sorteio. Os outros não. Tal exame seria, ao mesmo tempo, um instrumento para avaliar a qualidade de ensino nas escolas.
Já foi sugerido que, para evitar o vestibular, o ingresso nas universidades deveria se basear no histórico escolar do aluno. Para mim, isso seria um desastre. Eu não entraria. Como já confessei, fui mau aluno. E afirmo que, com honrosas exceções, os professores que tive não mereciam que eu aprendesse o que eles diziam estar ensinando.
Currículos escolares de que escolas seriam dignos de crédito? De todas? E as burlas? Como impedir que escolas inescrupulosas oferecessem históricos escolares fajutos, com entrada garantida na universidade? Para evitar tal possibilidade, seria necessário criar um clube de escolas de elite, cujos históricos escolares seriam dignos de crédito. Somente os históricos escolares de alunos de tais escolas seriam aceitos. Mas escolas de elite são caras... Só os ricos poderiam pagar. Tal sistema produziria uma brutal discriminação contra os pobres, pior que aquela que atualmente existe. A emenda seria pior que o soneto...
A utopia do fim do vestibular
Não me lembro direito, mas é mais ou menos assim um versinho que Mario Quintana escreveu sobre as utopias: "Utopias, dirão, são impossíveis... Mas isso não é razão para não tê-las. Que tristes seriam as noites sem a luz mágica das estrelas...". Na noite escura da estupidez dos vestibulares, sugiro que, por um momento, brinquemos sob a luz mágica de uma estrela...
Imaginemos que os vestibulares fossem substituídos por um sorteio. Quais seriam as consequências?
1. A primeira consequência seria o imediato fechamento dos cursinhos. Não teriam mais razão para existir. As classes mais abastadas, que podem pagar seu preço, não teriam como gastar esse dinheiro. (Uma curiosidade: alguém já fez um cálculo de quanto dinheiro se gasta anualmente no preparo para esse ritual inútil? Quanto vale o mercado dos vestibulares? Sei que é muito dinheiro...)
2. Eliminados os vestibulares, as escolas de primeiro e o segundo graus (eu ainda uso terminologias antigas...) estariam livres para ensinar. Não teriam de se ajustar ao imperativo de "preparar para os vestibulares". São os vestibulares que determinam os rumos das escolas. Os professores que preparam as suas questões o fazem na ignorância de que suas escolhas vão estabelecer o rumo das escolas do sistema educacional brasileiro e o destino das crianças e dos adolescentes. Essa é a razão por que as escolas "fortes" se dedicam a treinar os seus alunos com questões de vestibulares anteriores: ITA (1997), USP (1985), Unicamp (2001), etc.
Livres dessa guilhotina, as escolas poderiam se dedicar à literatura por puro prazer, sem ter de ler dinamicamente resumos dos clássicos. Poderiam levar os alunos pelos caminhos da pintura, da poesia, da música, da história da ciência... Haveria lugar para o sonho dos alunos. A importância dos sonhos? Todo conhecimento começa no sonho. Não é à toa que Polya, matemático húngaro que ensinou na Universidade de Princeton, no seu curto livro sobre a arte de resolver problemas, tenha aconselhado: "Comece pelo fim". A resolução do problema é a ponte que se constrói para chegar a esse fim —se é que o aprendiz o sonhou. Primeiro, o sonho da casa; depois, os conhecimentos práticos necessários para construir a casa. Primeiro, o sonho das asas; depois, a milenar investigação de como voar como as aves.
Um amigo meu, o alemão Polykarp Kusch, Prêmio Nobel de Física e ex-presidente da Universidade de Columbia, me confessou que, após ganhar o prêmio, abandonou a pesquisa e passou a se dedicar ao ensino —não dos pós-graduados, mas dos jovens. E os seus cursos começavam sempre com a mesma pergunta: "O que é necessário pressupor para que se faça a ciência da física?" A resposta é simplíssima, embora seja necessária uma longa gravidez e um longo trabalho de parto para que ela surja dentro dos alunos. Dizê-la, simplesmente, de mão beijada aos estudantes, não funciona. Porque nós só entendemos realmente quando o conhecimento é construído como ponte, passo a passo. Conhecer é construir pontes entre o sonho, estrela distante, e o lugar onde me encontro. Como disse Guimarães Rosa, a coisa não está nem na partida nem na chegada. Está na travessia...
A resposta é a seguinte: para fazer física, é preciso pressupor que o universo seja ordenado e racional. Os grandes físicos estão em busca dessa ordem universal. O seu sonho é decifrar as regras desse xadrez fantástico que é o universo. As escolas deveriam ser "sonhatórios" (pois não há "escritórios"?), onde nasceria o pensamento inteligente! Mas isso é incompatível com a ameaça dos vestibulares, que esperam os alunos à moda da esfinge de Édipo: "Dá-me a resposta certa ou te devoro!".
Se os vestibulares fossem substituídos por um sorteio, o fantasma das respostas certas desapareceria, e as escolas poderiam se dedicar à arte de pensar, que é a arte de fazer perguntas inteligentes.
3. Embora haja raras exceções, a regra é que os cursinhos sejam o caminho para passar nos vestibulares e entrar na universidade. Mas os vestibulares e suas crias, os cursinhos, são uma porta estreita que tem uma clara "opção preferencial pelos ricos". Entram nas universidades públicas gratuitas os que têm mais dinheiro. Os mais pobres ficam de fora. Têm de se contentar com universidades particulares pagas, se é que podem. O atual sistema é, assim, um jogo de cartas marcadas. Injusto socialmente. Com o sorteio, todos —ricos e pobres— teriam oportunidades iguais.
Já se fez a sugestão de cotas para os negros, que estão entre os mais seriamente discriminados pela porta estreita. Mas esse artifício não resolve os problemas educacionais que indiquei, produzidos pelos vestibulares. E é provável que crie uma séria consequência social: será impossível evitar que os "brancos" que "quase entraram" desenvolvam um sentimento de raiva contra "os negros que entraram por favor", culpados de eles terem ficado de fora.
Morangos à beira do abismo
Um homem ia feliz pela floresta quando, de repente, ouviu um urro terrível. Era um leão. Ele teve muito medo e começou a correr. O medo era muito, a floresta era fechada. Ele não viu por onde ia e caiu num precipício. No desespero agarrou-se a uma raiz de árvore, que saía da terra. Ali ficou, dependurado sobre o abismo. De repente olhou para a sua frente: na parede do precipício crescia um pezinho de morangos. Havia nele um moranguinho, gordo e vermelho, bem ao alcance da sua mão. Fascinado por aquele convite, para aquele momento, ele colheu carinhosamente o moranguinho, esquecido de tudo o mais. E o comeu. Estava delicioso! Sorriu, então, de que na vida houvesse morangos à beira do abismo...
Escutatório
Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino...“ Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto... (O amor que acende a lua, pág. 65.)
Jardim
Um amigo me disse que o poeta Mallarmé tinha o sonho de escrever um poema de uma palavra só. Ele buscava uma única palavra que contivesse o mundo. T.S. Eliot no seu poema O Rochedo tem um verso que diz que temos "conhecimento de palavras e ignorância da Palavra". A poesia é uma busca da Palavra essencial, a mais profunda, aquela da qual nasce o universo. Eu acho que Deus, ao criar o universo, pensava numa única palavra: Jardim! Jardim é a imagem de beleza, harmonia, amor, felicidade. Se me fosse dado dizer uma última palavra, uma única palavra, Jardim seria a palavra que eu diria." Depois de uma longa espera consegui, finalmente, plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo porque jardins precisam de terra para existir. Mas a terra eu não tinha. De meu, eu só tinha o sonho. Sei que é nos sonhos que os jardins existem, antes de existirem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação de nossa verdade interior escondida, a alma nua se oferecendo ao deleite dos outros, sem vergonha alguma... Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros sem asas... São como as canções, que nada são até que alguém as cante; como as sementes, dentro dos pacotinhos, à espera de alguém que as liberte e as plante na terra. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia.
O terreno ficava ao lado da minha casa, apertada, sem espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo, mato, espinhos, garrafas quebradas, latas enferrujadas, lugar onde moravam assustadoras ratazanas que, vez por outra, nos visitavam. Quando o sonho apertava eu encostava a escada no muro e ficava espiando.
Eu não acreditava que meu sonho pudesse ser realizado. E até andei procurando uma outra casa para onde me mudar, pois constava que outros tinham planos diferentes para aquele terreno onde viviam os meus sonhos. E se o sonho dos outros se realizasse, eu ficaria como pássaro engaiolado, espremido entre dois muros, condenado à infelicidade.
Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu.
Não chamei paisagista. Paisagistas são especialistas em jardins bonitos. Mas não era isto que eu queria. Queria um jardim que falasse. Pois você não sabe que os jardins falam? Quem diz isto é o Guimarães Rosa: "São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os pássaros dos ventos do céu - constantes trazem recados. Você ainda não sabe. Sempre à beira do mais belo. Este é o Jardim da Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro, um grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha, banguelinha, brinca de se fazer Fada... Um dia você terá saudades... Vocês, então, saberão..." É preciso ter saudades para saber. Somente quem tem saudades entende os recados dos jardins. Não chamei um paisagista porque, por competente que fosse, ele não podia ouvir os recados que eu ouvia. As saudades dele não eram as saudades minhas. Até que ele poderia fazer um jardim mais bonito que o meu. Paisagistas são especialistas em estética: tomam as cores e as formas e constróem cenários com as plantas no espaço exterior. A natureza revela então a sua exuberância num desperdício que transborda em variações que não se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo por canais invisíveis, em ruídos de fontes ou folhas... O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante... E como é bom!
Mas não era bem isto que eu queria. Queria o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro de mim como saudade. O que eu buscava não era a estética dos espaços de fora; era a poética dos espaços de dentro. Eu queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas. Em busca do tempo perdido... Uma pessoa, comentando este meu jeito de ser, escreveu: "Coitado do Rubem! Ficou melancólico. Dele não mais se pode esperar coisa alguma..." Não entendeu. Pois melancolia é justamente o oposto: ficar chorando as alegrias perdidas, num luto permanente, sem a esperança de que elas possam ser de novo criadas. Aceitar como palavra final o veredicto da realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade é a dor que se sente quando se percebe a distância que existe entre o sonho e a realidade. Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade. Entendem agora por que um paisagista seria inútil? Para fazer o meu jardim ele teria que ser capaz de sonhar os meus sonhos...
Sonho com um jardim. Todos sonham com um jardim. Em cada corpo, um Paraíso que espera... Nada me horroriza mais que os filmes de ficção científica onde a vida acontece em meio aos metais, à eletrônica, nas naves espaciais que navegam pelos espaços siderais vazios... E fico a me perguntar sobre a perturbação que levou aqueles homens a abandonar as florestas, as fontes, os campos, as praias, as montanhas... Com certeza um demônio qualquer fez com que se esquecessem dos sonhos fundamentais da humanidade. Com certeza seu mundo interior ficou também metálico, eletrônico, sideral e vazio... E com isto, a esperança do Paraíso se perdeu. Pois, como o disse o místico medieval Angelus Silésius:
Se, no teu centro
um Paraíso não puderes encontrar,
não existe chance alguma de, algum dia,
nele entrar.
Este pequeno poema de Cecília Meireles me encanta, é o resumo de uma cosmologia, uma teologia condensada, a revelação do nosso lugar e do nosso destino:
"No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, urna violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de urna borboleta."
Metáfora: somos a borboleta. Nosso mundo, destino, um jardim. Resumo de uma utopia. Programa para uma política. Pois política é isto: a arte da jardinagem aplicada ao mundo inteiro. Todo político deveria ser jardineiro. Ou, quem sabe, o contrário: todo jardineiro deveria ser político. Pois existe apenas um programa político digno de consideração. E ele pode ser resumido nas palavras de Bachelard: "O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso."
Artigos de
Rubem Alves
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